sábado, 16 de outubro de 2010

MEMÓRIAS DO MARANHÃO


A Estrangeira e o Tocantins
Às vezes ficava pensando nos fatos presenciados no Norte... A travessia do Tocantins, o barco de madeira, a voadeira, ocaso diário. O calor. As ladeiras beira-rio no verão. As enchentes do inverno, casas engolidas até o telhado. A população ribeirinha voltava sempre a construí-las no mesmo lugar.
E dar aulas de Inglês aos meninos índios, da reserva vizinha. Padre César os incentivava tanto! Dava-lhes livros, uniformes, ia saber por que faltavam às provas... "Ôji a gente não qué i. Tava pensano i pescá". Ainda desconheciam a mentira... Mas, deviam estudar inglês – não pertence ao currículo? Tantas vezes amanhecera a notícia – alguma aluna tinha sido roubada. Quando iam casar?
Foto tirada na fazenda.
Professor. Lá, ainda tinha status. Era sempre cumprimentada com respeito. Muitos nem se sentiam à vontade, tamanha a deferência. Não vinha do sul? Estudada? Além dos padres do colégio, era a única dos docentes que cumprira graduação. Contudo, todos eram bons, responsáveis, dedicados; sonhavam, um dia, quem sabe, cursar uma faculdade. Ali não havia. Os que tinham saído não costumavam voltar. Iam, estudavam, talvez se casassem, ficavam por lá.
Otávio e filho caçula da Aparecida e do Jamil, 1980.
Quando já se viajou muito, viveu-se noutro país, as mudanças tornam-se fatos que provocam pouca ansiedade. Aprende-se a observar sem que as coisas nos surpreendam muito. Entanto, no interior, não há de se ficar alheio. Exigem seu participar. Quando morara em São Paulo, na faculdade, as colegas diziam-na do norte. Morando ali, no sul do Maranhão, todos a consideravam diferente. Esses mineiros, essa gente do sul, são todos iguais. E seu Goiás? Sentia-se híbrida, mais nada.
Fábia junto ao Grupo onde estudava, 1980.
Calor tornou-se associado ao vazio. Falta da comunicação habitual. Falava sobre a lida, o dia-a-dia daquele povo, o que podiam entender. Aos poucos, sentiu a diferença entre comunicação e expressão. Já não tentava expressar-se, armazenava. Angústia e calor. O diz-que-diz do lugar não podia tocá-la. Se a comunicação acelerava, tinha seus parâmetros sempre mais reduzidos.
Um dia assistiu a um parto em meio ao Tocantins. A mulher vinha do sertão com uma comadre, bem cedinho. Nada, as dores amiudavam. Não trazia nada. No SESP, do outro lado, ia ser atendida. Nada pagaria e ainda vestiriam o bebê. Não deu para chegar. O nenê veio à luz no próprio barco. A outra o enrolou na própria saia. O menino-barqueiro resolveu voltar à margem. Xingava, olhando o piseiro. A mulher descendo do barco com o aspecto de uma crucificada, suando silêncio, a comadre a subir a ladeira com a criança, embrulhada na saia, suplicando ao motorista de táxi as levassem até o entroncamento... Ninguém ficara espantado – o menino seria chamado José (nome de enchente) do Tocantins Nascimento (sobrenome).
Doutra feita fora ao grupo Escola, freqüentado pelos filhos. Eles reclamavam sede. Nenhuma água havia. Por quê? Briga do Estado com o município, professora. Se a gente dispensasse os alunos por falta d’água, aqui não haveria aula há mais de seis anos.
Em pequena tinha verdadeiro pavor d’água. Aprendera a nadar (mal), depois dos vinte anos. Nas aulas levara oito sessões para ter coragem de boiar; mesmo depois de aprender, poucas vezes ousou saltar n’água. Mas naquele dia quase o fizera. De repente, poucas pessoas no barco, viram a cobra. Sentia-se presa, estátua.
Otávio, Fábia, Elisa, Cristiane e irmão caçula, 1980.
Tempo psicológico infinito. Deixar-se ficar ou saltar. Durou muito, não se decidia. Alguém matou o bicho, quebrando parte do barco de tábua. Sua compreensão demorou a decodificar o desfecho. Fora muito pior que a vez em que o motor pegara fogo e o barco deslizara à deriva. Esperavam que alguém os visse das margens e lhes viessem no encalço. O barco descia a correnteza. Podia bater em algo, virar... Mas foi visto e salvo.
Porto Franco. A cidade do já era. O povo dizia que essa havia possuído telefone, asfalto, gente jovem... Tudo se fora. Os jovens ainda vinham nas férias. A preferência era o mês de julho. Havia praia. A praia da Santa descobria-se no meio do rio, acenando duplamente aos pedaços de Goiás e Maranhão, no bico do papagaio. Hoje o pedaço do bico é do Tocantins, simplesmente...
Crianças na casa onde moramos em Porto Franco, MA.

Aborto. As discussões sobre o tema, em ambiente universitário, citadino, nada têm a ver com as impressões que colhera ali. De repente descobria que nunca fizera uma leitura de muitos fatos que se ignoram no dia-a-dia. O corre-corre da vida na cidade grande não nos dá opção. Dona Carmelina fora chamá-la para fazer uma visita. A mulher estava doente. Não forneceu detalhes. Todos, certamente, já estavam ao corrente. Na casa próxima, a mulher a esvair-se em sangue. Abortara dependurando uma espécie de ferradura, apensa ao útero. Nunca vira tanto sangue. A prima preparava remédios caseiros. Ela estava muito fraca. Escondera, a princípio, e ensopara toda a roupa duma cômoda. Na volta, Dona Carmelina explicava. Tão bonita a mulher! Não dava sorte com os homens! O marido saíra um dia para comprar sabão, há anos, nunca votara. Ficou sozinha com duas crianças. Depois apareceu o segundo. Todos incentivavam a união. Ele também abandonara a esposa ao encontrá-la com o outro. Os filhos já estavam grandes, estudando fora. Estiveram juntos por algum tempo. Teve uma menina. Depois ele voltou para a antiga mulher. Agora mantinha aquela relação com o dono da loja de tecidos, que era casado, cheio de filhos.
O povo ali era bom. Todos ajudavam uns aos outros. Estavam sempre informados de tudo, mesmo sem a existência de jornal. A TV de vez em quando funcionava. Quando a torre avariava, às vezes, passavam-se meses até que voltasse a funcionar. Não havia luz elétrica durante todo o dia. Chegava à nove, desligavam o motor ao meio dia. Ligavam-na à tardinha até à meia-noite.

Fábia e Otávio, 1985.
Morara um semestre na fazenda, em pleno sertão. Fora antes de as crianças irem à escola. Distava setenta Km de Porto Franco. A casa era um rancho reformado, fechado com paredes de alvenaria e chão cimentado. Aberto em cima, um triângulo de cada lado. Estava em meio a uma divisão do pasto, uma pequena tira de mata quase virgem à frente. Por trás, o rio Lajeado. Dizia-se que tinha jacarés. Nunca vira algum. Apenas muitas cobras, de todos os tamanhos, até uma sucuri – a sucuri nunca ofende a dona da fonte -, esperava que saíssem, ela e os meninos, hábito de todas as tardes até então. Depois cercou o pião que viera desbastar as árvores da beira da fonte. Ele alertara o patrão. Esse buscara a espingarda sob seu olhar atemorizado. Minutos mais tarde ouvira os tiros. Foram só dois, na boca do bicho de metro e meio. Tiraram-lhe a banha que servia de remédio.
Naquele dia o marido amanhecera pior. Parecia ter pegado gripe forte. Há uns dias não se alimentava bem. Agora vomitava, queixando câimbra nos membros esquerdos. Permanecera na rede, nervoso, muito fraco. Era festa do Divino, não havia morador na fazenda. Quase todos tinha ido para a reza em outra fazenda.
Tivera que tratar dos porcos, das aves. Carregara o saco às costas, todos curiosos, sempre observando-a lidar com as coisas. À noite arrumara uma mala. Se ele não melhorasse, iriam cedo para a cidade. Havia um povoado mais próximo, mas tampouco possuía hospital. Em Porto Franco havia o médico do posto.
Quando Vicente voltara à noitinha, aliviando a ressaca da pinga com algum excesso de alegria, pedira-lhe que bem cedo preparasse os animais. Teriam que ir à cidade. O patrão piorava. Já não andava. Braço e perna esquerdos estavam dormentes, meio paralisados.
Os animais ficavam soltos a cerca de duas léguas no varjão. Vicente fora cedo, mas não os encontrara. Restava pedir ao vizinho, do outro lado do rio, que emprestasse os animais.
Botou a bagagem e o menino em um deles. Montara o outro burro com a menina. Álvaro fora colocado sobre o terceiro, Vicente a pé, puxando o animal. Cinco léguas até o Paraíso. Tão devagar, a viagem aflita.Seria derrame? Daria tempo. Horas depois, além da metade do caminho, o rancho do Alcides Branco. Vicente tomou o melhor animal e foi sozinho à Vila, para fretar um carro. O restante da estrada não era transitável, muito barro, tocos de picada. E os mutucas de ferrão. Dali à frente, o areião. Tombador. Voltou logo, esperto, prestativo nas necessidades.
Gustavo, Otávio e Fábia, 1986.
Não tinham dinheiro. O aluguel da casa em Goiânia seria enviado no fim do mês. O outro Vicente, o do armazém, mais tarde vereador, emprestou-lhes todo o dinheiro de que dispunha.

Chegaram à noite a Porto Franco. Os meninos ficaram na casa do seu Sé. Dª. Carmelina viajara. Prepara-lhes um lanche e levou-o ao médico. Não havia luz. O médico não pôde examiná-lo. Passara-lhe alguns medicamentos, pedindo que voltasse de manhã. Nada encontrou nas farmácias. Um era injeção. Teriam que se apressar, descer a ladeira e pegar o barco para Tocantinópolis. Poderiam ligar do centro telefônico de lá e, quem sabe, encontrar o necessário.
Do outro lado tomaram um táxi. Pediu ao motorista que ajudasse o marido nas farmácias. Depois, deixá-lo-ia na beira do rio, enquanto ela ia telefonar. Havia muita gente. Esperou cerca de duas horas. Ligou para a irmã, pedindo que lhe adiantasse o dinheiro, pelo banco local, na manhã seguinte. Se Álvaro não melhorasse, só andava apoiado, a perna já nem mexia, poderia interná-lo?
Custou-lhe distingui-lo à beira do rio. Tão escuro. O barco no Tocantins. Voltaram. Seu Sé foi franco. Hábito cultural da região. Não se enganava, não. Vira o irmão de Carmelita morrer de derrame. Fora mais rápido, mas os sintomas eram idênticos. Se preparasse para o pior. No dia seguinte não voltou ao médico dali. Nem tudo que ele receitara foi encontrado. Não havia luz, nem hospital. Melhor Tocantinópolis.
Seu Sé emprestou a camionete para atravessarem na balsa. Álvaro, agora, só carregado. Valter dirigiu, levou-o ao hospital, onde ficou internado. O outro médico pensava em falta de circulação nas extremidades. Este diagnosticara um derrame. O doente ficou na enfermaria enquanto, com Valter, ia revalidar a carteirinha do INSS. No interior a burocracia é menor, apesar da falta de conforto.
Voltou para Porto Franco para fazer almoço. Os homens com a viagem da dona da casa comiam fora. Naquele dia, todos (meia dúzia?) almoçaram lá.
Depois do almoço pegou o barco para Tocantinópolis. Foi ao banco. O dinheiro chegara, ainda bem. Poderia acertar o frete até à cidade. Comprar mistura para as refeições. Voltou a ligar da telefônica. Falara pouco à véspera. Todos preocupados, não tinham como comunicarem. Álvaro já estava internado. Suspeita de derrame. Continuava na mesma. Os meninos ficaram com uma vizinha de D. Carmelita. Ela se oferecera e aceitara na hora. Era a mulher do aborto, mas então, ainda não se tinham visto.
Por cinco dias repetira a visita à enfermaria nos dois turnos. No terceiro dia, Álvaro contou que por pouco morrera. Sentira lhe gelar uma das pernas, o médico, chamado às pressas, aplicara-lhe uma injeção. Começava a querer mexer o pé e os dedos da mão. Conversou com o médico. A família em Goiânia aventara a possibilidade de mandar buscá-lo. O médico não o permitiu. Se não houvesse alterações, teria alta logo. Porém, levaria meses até que voltasse a andar normalmente. Teria que continuar com os medicamentos para evitar recaída fatal.

Renata, Regina, Fábia, Tarsila e Leandro, 1986.
Dª Carmelina chegaria à noite daquele dia. Seu Sé entregara-lhe duas galinhas mortas que pedira a uma vizinha que matasse para preparar-lhe ao molho pardo. Nunca preparara uma galinha. Informou-se sobre o molho e quase vomitou. Desde pequena tinha nojo de frango. Imagine preparando dois - molho de sangue como gema de ovo?
Foi rápido ao hospital. Teria muito trabalho naquele dia. Álvaro estava bem melhor, até satisfeito. O pior foi a permanência no hospital. A uma quadra de distância sentira um mau cheiro horrível. Coisa podre. Operaram uma mulher do sertão que trazia uns tumores putrefatos. O odor impregnara-lhe as narinas. Vomitara antes de entrar no hospital que estava sendo todo lavado, chão, paredes, mobiliário. Saiu logo, como vomitava fácil! Infelizmente o cheiro não ficara lá – trazia-o no nariz. Por dois dias ficou quase sem comer. Tomava café, pão de queijo seco.
Foi terrível preparar o jantar. Mas deu certo. Até os frangos ou galinhas ao molho pardo. Preparara pizzas também que agradaram a todos. E como sempre aparecia tanta gente às refeições, preocupada, exagerara a quantidade do arroz. Sobrou para o dia seguinte. Dª Carmelina – tão doce e forte, mãe. Regina, você joga com minhas cartas, a sua vida. Contava passagens do nascimento dos dez filhos, o marido sempre ausente, enfrentando tudo sozinha... Repetiu-lhe o provérbio – “Deus escreve certo em linhas tortas” – agora, Álvaro vai ter que vender essas terras, voltaremos a Goiânia. Os meninos irão para uma boa escola...
Este era o plano que discutimos quando Álvaro voltou do hospital. Era meado de maio. Época da colheita do arroz. Deixara-o lá plantado. Era necessário primeiro voltar à fazenda, terminar a colheita. Em julho voltaríamos. Teríamos vendido também o trator, o gado e a pequena máquina de beneficiar arroz.
Voltamos e quinze dias depois ele andava quilômetros e quilômetros, trabalhando na colheita. No final de junho retornamos a Porto Franco. Álvaro já vendera o trator, mas ainda não o recebera. Havíamos comprado as passagens – vinte e quatro horas de ônibus – pela Belém-Brasília. Quando esse não quebrava. Doutra feita nos atrasamos dez horas.
Resolvemos que eu viria na frente. Traria Izinha, filha de vizinhos da fazenda. Ela queria estudar e poderia ajudar-me com as crianças. Minha irmã ia casar-se em julho – seríamos testemunhas.
Fiquei hospedada em casa de outra irmã. Nossa casa estava alugada. Mas mamãe arranjava-nos um barracão, onde morávamos antes, que estaria desocupado em breve.
Álvaro voltou só no dia do casamento. Quando conversamos, mais tarde, contando-lhe que havia matriculado as crianças em um bom colégio e assumira a coordenação geral de uma escola da rede pública, pedindo retorno ao cargo anterior, ele, então, disse-me que recebera o dinheiro do trator e comprara mais cem alqueires de terra. Pretendia desenrolar o processo demarcatório da terra para posterior financiamento.
Em meio à minha enorme decepção, mágoa, desespero, (in)compreensão resignada, ele afirmou que “poderíamos permanecer” ali em Goiânia. Teria mais liberdade para agilizar alguma produção na fazenda. Ficamos. Jurei que nunca mais moraria naquela fazenda.
Álvaro, Fábia e Otávio, em 1986.
Em novembro ele voltou para buscar-nos. Falou das vantagens de morarmos em Tocantinópolis ou Porto Franco. Eu poderia afastar-me por algum tempo da direção do curso de Inglês que possuía com duas sócias e pedir minha remoção para Tocantinópolis. O contrato valia em todo o Estado.
Mudamos em dezembro e comecei a juntar as experiências diárias da travessia do Tocantins, a princípio, pela manhã e à noite, Depois fiquei apenas de manhã. A vida não é uma escola? Prometi que ficaria por dois anos. Então voltaríamos.
Voltei com as crianças na época combinada. Álvaro nunca entendeu por quê. Concordou. Depois, revoltou-se. Vinha a cada três ou quatro meses, chegando sempre com a esperança de levar-nos. Quando vim sabia que jamais voltaria lá. Ele não. Quebrou a cabeça por mais alguns anos até que desistiu. Foi duro assumir sozinha a responsabilidade educacional de duas crianças – criadas apenas com os proventos do magistério goiano. Mas nunca me arrependi.
Lembra-me de seu susto, quando, ao retornar da fazenda, soube que eu vendera tudo, para virmos embora. Era o que tínhamos(?)combinado. Acordo unilateral. Ele nunca escutava o que não lhe interessava. Com o tempo mudou muito pouco.

Texto escrito por REGINA LUCIA DE ARAÚJO, baseado em sua própria experiência de vida em Porto Franco, MA., até 1981, quando retornou a Goiânia. 

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